terça-feira, 13 de março de 2018

Entupimento

Chegava sempre de surpresa e batia na porta. Mais especificadamente naquela porta com o tapete listrado. Tratava-se de uma república de estudantes, com um corredor de portas feitas para bater. Em cada porta havia uma cor, um costume ajambrado a enfeitar a fachada. Mas sempre, sempre quando alguém no corredor se dirigia na direção dele, a reação não era das mais coloridas. Estar consigo mesmo é uma raridade absoluta num mundo em que os privilégios segregam.
Na maior parte das vezes a permanência dele ali por minutos ou horas à espera daquele mágica abertura de porta lhe trazia uma ansiedade tamanha, mesmo que pensasse (ou quisesse pensar) ao contrário. Isto porque esperar por duas ou três horas não garantia absolutamente nada, por mais que buscasse depositar a atenção em algo, por mais que houvesse chance para flutuar. Mas quando o acaso se deparava com o cotidiano dos fatos magros, o encontro dobrava de tamanho.
Ela sorria com a sola dos pés descalços. O jeito desmazelado e brincalhão lhe serviam de charme próprio. Alguém como ninguém. Há que se dizer que ela tinha um amor especial pela horta localizada no fundo da república, ainda que naquela altura estivesse com o mato alto e abandonada pelos demais vizinhos.
Os desenhos que fazia colava na entrada do quarto. A poesia deixava próxima da cama, bem ao lado do retrato que tinha com a mãe sorrindo ajeitando o bracinho do bebê na camiseta. No retrato havia mais que um sorriso. Havia amor. E ele por vezes se perdia naquela foto, como se ele próprio estivesse ali também, a ser colocado em cima dos joelhos dela.
Certa vez após brincarem com as crianças, se abraçaram por um tempo indeterminado. Parecia que algo havia sido selado entre os dois. A blusa de cor azul bem molhada dela de encontro ao terno amarrotado dele. Ali havia entrega. Ali havia o encanto do instante , o canto do cisne e todas as lendas sonhadas pelos hippies. Talvez não houvesse ciúme que pudesse encaixar naquelas linhas tão alegres e simples.
Uma semana depois, ela disse estar indisposta e que arrumara um novo namorado. E mais: que era ciumento.
……………………………………………………………..
- Estou com a cabeça nas nuvens. Me desculpe…
Eram duas da manhã e o bar está prestes a fechar.
- Já parou para pensar que as imperfeições nos libertam? — retorquiu.
Naquela hora da noite, não havia mais competição pelo tom mais alto de voz. À frente deles, copos semi-vazios e guardanapos marcados pelo líquido escorrido das garrafas deixavam marcas na mesa de plástico. Podia-se, inclusive, ouvir um grilo cantando bem ao longe.
Partiram. Durante o percurso, se não fossem os grilos e o cimento da calçada, poderia dizer que emudeceram. Os pensamentos concentrados em qualquer coisa de especial.
-Imagine você que o olho é um órgão gelatinoso… — disse, acendendo um cigarro e lançando a fumaça lânguida de modo vagaroso — talvez seja o órgão mais sensível do corpo, aquele que faz a conexão entre o exterior e interior. — jogando a gimba no chão — É por isso que precisamos saber ler os olhos.
Olhando para o chão, com a cabeça curvada e não sem antes gaguejar, retrucou:
- Eu tenho muito receio dessas leituras …Eu sou tão esquisita que tenho medo que leiam meus olhos errado…. especialmente se eles demonstrarem o contrário do que estou sentindo. Sabe, é muito difícil demonstrar que se gosta de alguém, assim, sem palavras — esboçou um sorriso amarelo.
- Agradeço a sua sinceridade. A maior parte das pessoas que praticam monólogos ou que tem preocupações em questões morais acreditam na seriedade.
- Não sei o que falar, na real.
Desviaram do exo-esqueleto de um sapo. À distância, galhos retorcidos de maneira sinuosa, tais quais cobras fossem.
- Quando a cabeça fica na nuvem, o que acontece? É possível saber?
A noite estava estrelada. A vontade dele naquele momento era que justos pudessem ser amar, em algum reboco esquecido ou em algum recôncavo que não fosse maior do que três palmas esticadas. Mas antes precisava que os olhos ziguezagueassem de um lado para o outro naquele semblante dela, que pusesse as mãos entre os ouvidos e que se lançasse sobre aquelas águas. Como demonstrou um pouco de insegurança quanto ao momento, meio sem saber o que fazer, foi se deixando levar, acreditando num acaso que fosse mais fortuito. Mas ela não estava lá. E a caminhada misteriosamente se seguiu.
Depois daquele dia, nunca mais soube dela.
………………………………………..
Havia um tempo em que confundia abraços apertados com beijos bem dados. No limbo das indefinições o instante se atravessa de demandas e expectativas que brilhavam, como o frescor de um vegetal indo de encontro ao primeiro feixe de luz e o crepitar interno das frutas.
Atravessa uma ou duas ruas até a fosforescente farmácia. No outro lado da rua, vê a figura se movimentar, a esperar o semáforo funcionar. Aqueles vinte segundos de espera, permitiu que ele resenhasse algum gesto de frustração. Entretanto, um desenho aflitivo se desenha em ambos os lados.
O contato. Finalmente, o contato. Aquele sentir de madureza no corpo. A viagem trepando em galhos na mais alta copa da delicadeza. Balançam frágeis aquele calor e quase tão rápido que nem chega a ser feito de segundos. Desfaz-se o movimento, na retração dos passos. “Demais? E por que seria demais?” ele pergunta.
Primeira cerveja, variáveis sorrisos e uma vontade louca de se preencher silêncios como quem se inebria de si. Passado o horário da chuva, vem a conta. Para ambas as partes, a conta. Ambos pagam e saem. No tropeçar das pernas, entre risos e inconsistências, o silêncio mais uma vez não se coloca. Nervosismo e coisa alguma. No momento final, estertora a palavra num pulo feito de um abraço demorado, apertado.
- Quando vamos nos ver novamente?
Desta vez, o mais mortal dos silêncios. Não é o bastante para o sonho dela. Ela o empurra, sai de perto e diz “adeus”.
Medita com o rabo entre as pernas. A poesia mais uma vez o entope.
-
Já sabia de outros carnavais que a idealização era um prato amargo a se comer e por isso não tarda a começar os trabalhos. Tinha o corpo coberto por tatuagens e uma série de piercings no rosto. A primeira impressão nunca é das melhores. Cabe às palavras, portanto, de fazer esse papel das profundidades. É através delas, aliás, que o chão se constrói pedra sobre pedra.
Estão ali, um diante do outro, mas não sente-se à vontade para beber ou para comer. Ele, por mais sorridente que possa parecer, não está ali. Estava com a cabeça nas nuvens, a fornicar o momento pelas bordas. E assim como as nuvens chegam, elas partem, levando-o consigo uma nova forma de dizer adeus: desta vez sendo ele o primeiro a mencioná-la. Já estava entupido, mas não de poesia.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Laboratório 6 - zigue-zague mântico (poemas feitos à 4 mãos)

 Sem título I

Em versos abertos diluo as horas
Do verdume sei assegurar
Infiltrar num horizonte de estribilhos
Sarapatear a solução ao belo mar

Não há saudade que chova às margens
Travesseiros é o que peço!
Que emplumando-se as rochas a fazer canoras
Faz do peixe um deslizado,
Para as palmas crescerem. 

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Sem título II

Estrelas em centelhas já revoltas
Que em contar tempo desperdiçam horas
A vigorar a luz campestre das anêmonas
Náufragos báus regurgitado memórias!

Andrômedas brincantes
De invento brim,
alegria em musgos na maré

Dançamos de mãos juntas o porvir do amanhã
Exílio de estrela no céu da boca
Arremessando pétalas
à flor da debulhada estação

Descansemos abraçados ao relento
E o fim depois do fim, anuncia o recomeço?

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Desencontros

                                                                 still de Muito além do jardim

Amarrota a gola da camisa de brim e já é quase um começo, embora nem sempre haja espaço para o pleno amanhecer: aquele imaginado e idealizado. Às vezes é necessário um cadafalso para fazer-se desperto ou voador. Quem sabe a sorte esteja mesmo na percepção de que as peças nunca estão postas na direção de nosso olhar? Porque quando examinamos mais de perto, vemos que o travessão antecede a sombra, marcando a base de todas as esperas.

Esperam vagabundos, cafajestes, difamadores, cínicos, vaidosos, egocêntricos e plêiade mais. Esperam pelo que possa ser ideal,imortal, prazeroso. Por isso cruzam as mãos umas sobre as outras quando estão sós, tal qual cruzassem os braços sobre o peito. Quiçá soubessem o calor de uma mão sobre o ombro do outro...seria esta a tal noite de núpcias do instante com a eternidade?

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Da série "A provação da luz": Massa estanque (2016)


MASSA ESTANQUE from Nayra Albuquerque on Vimeo.



O curta começa com uma expressão morna tanto sonora quanto visualmente, como se se tratasse de sonhos, mas depois surge um desequilíbrio: as pessoas se estagnam, viram zumbis a céu aberto. E elas marcham, indiferentes, rumo ao nada. Elas estão entupidas de nada e nem espaço chegam a ter para o vazio, para o zero que reconecta um ao outro. E tanto que sangram nas mãos, nas vestimentas e utensílios. Há quem observa a marcha acontecendo do outro lado. Não percebem que é também com eles. 
A visceralidade do noise vai criando tensões bem interessantes. O desfecho é dos melhores, com o vira-lata se alimentando daquilo que sobrou. Experimental, mas bem conciso.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Do amor



                                                         Window Water Baby Moving
                                                                    [Stan Brakhage]
                                                                              1962



1 - partitura "valsa para quatro ventos":


Lô. diz a  _Sim_Não_: Sim

_Sim_Não_ diz a Lô.: Não
Lô. diz a _Sim_Não_: Não
 _Sim_Não_ diz a Lô.: Sim
Lô. diz a _Sim_Não_: Sim
 _Sim_Não_ diz a Lô.: Sim
Lô. diz a _Sim_Não_: Não
 _Sim_Não_ diz a Lô.: Sim
Lô. diz a _Sim_Não_: Sim
 _Sim_Não_ diz a Lô. : Sim
Lô. diz a _Sim_Não_: Não
 _Sim_Não_ diz a Lô. : Não
Lô. diz a   _Sim_Não_: Não
_Sim_Não_ diz a Lô.: Não
Lô. e _Sim_Não_: São


 (pausa)



 pésjuntos                                                                                               p  e  s    
                  
                          p e s 

                                                                     pésjuntos

                     
                        p e s


                                  p   e   s



                                                              p  e  s


                                                                                                           pés_juntos


juntosèp
                                                           pé_juntos
                                                                                                             


pésjuntos



Refrão: Lo Li Lá Lá Lá Lé Lé Ló Ló / Lo Li Lá Lá Lá Lé Lé Ló Ló




Velada, a valsa se alimenta de prazeres inconsequentes, prazeres que se projetam laminados, de modo a embeber a superfície caiada do corpo-a-corpo. Com que sabor virá?  


 2 - brilho

- Porque assim a força do hoje-agora, futuro não-mais, poderá reagir de maneira favorável a escapar ou pôr chifres onde não se é esperado ter.
- Eu sei. Pareço ter pouco brilho.
- É que ainda falta você cruzar melhor com o acaso. Aí quando se levanta, o brilho aparece. Assim sentado, a sombra aparece.
- Sei...
- Não sabe que o amor suporta o ódio. A felicidade, a ignorância. O encantamento, o erro?
- E eu preciso de tudo, menos de razão. Alguma razão de que mereça?
- Desrazão com uma pitada leve de amor próprio. Nunca chegou a se sentir?
-  Apago a luz, todas as vezes.
- Alguma vez alguém te forçou a querer?
- Nunca sentiu culpa por algo?
- Os anos que te aguardam parecem querer dizer mais.
- Não sirvo para eles.
- E por que perecer pela fragilidade, se teu corpo é janela e porta? Nunca saboreou a profundidade da pele? A transparência do vaso?
-  Por isso desenho. 
- Veja só! Teu brilho está no alcance de suas mãos. Basta arrancar a pesada cortina de teus aventais, para que a luz possa contaminá-la de traços firmes e diagonais.  
- ...

E mais uma vez a alvorada se fazia chance. Se a vida comia do jeito que comia, havia um corpo que respirava à revelia do mundo exterior. Seria ele finalmente possível?


Window Water Baby Moving
                                                                    [Stan Brakhage]
                                                                              1962


3 - dor

Havia me dito que se tratava de algo intratável e inafiançável. Não acreditei. Ao dar um abraço, para além do desânimo que o afetava, percebi o sintoma se deslocar na sua pele vermelha. E isso fez toda a diferença para resolvemos aquele problema de outra forma. Porque a cura não existia, e o tempo não era dinheiro.



One month in the countryside
[Eleni Karaindrou]
"Unreleased recordings" (1990) 


as flores são do tamanho dos passos.
e em cada pétala há uma imagem.
e em cada imagem um ninho
que é possibilidade e átomo.

Espasmos? Não, filosofia de vida.
E como dói. 

4 - crença

Dizem que o tempo é feito de escolhas. Talvez o tempo seja mesmo feito é de diluição. E o que se dilui é a imagem do que se planeja, de cada redoma, de cada cúpula. Pôr abaixo tudo aquilo pelo que se espera, na curva de uma pulsação. Se um corpo é fragilmente sensível a ponto de sentir algo que não se quer, é sinal de resiliência, que não se atingiu ainda a frequência, isto é, que se está à curva da pulsação.

A crença é o que justifica o som no coração. Isso porque o som no coração não é feito de expectativas. Quando a crença é feita de uma lentidão, dá-se o alinhamento das sobreposições. E esse é o segredo que cada coração resguarda.
 

                                       Life in a tin 
                                   [ Bruno Bozzetto]
   
5- lembranças

- Acho que lembro de você.
- Eu não poderia dizer que seja recíproco.
- Deixa pra lá.
-Você está me parecendo alguém agora...
- Já conversamos, não vamos nos repetir. Pule pra próxima.
- Se assim deseja...você não é uma escritora?
- Sério, é uma nova perda de tempo, já que não guarda lembrança. Horas conversando por nada. Eu passo. De qualquer forma, obrigada.  
- Não acho que seja "horas conversando por nada". Até porque se há um hiato, deveria, penso eu, ter alguma vontade em redescobrir, porque é no mínimo curioso. Isso para mim me é maravilhoso, algo como o "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças". Enfim, mas se isso a desagrada, a respeito.
-Parece dispensável demais. Obrigada.
- Não vou mais incomodá-la...agora estou começando a me lembrar de quando sussurrei algo no meio do teu ouvido.
- E se levar um tapa pela invasão? O que faria?
- Foi exatamente o que me disse da última vez. E eu diria algo como "Pensaria que se trata de um caso sério. O que é surpreendente, pois pensava se tratar de algo descompromissado".
- Não me lembro disso ter acontecido.
- E eu diria logo a seguir: "O que fazer se os afetos nos governam? E se é essa a instância do humano?"
- Não me lembro em absoluto. Você está inventando! Adeus.
- E seu dissesse que tenho aqui em mãos um registro do que foi conversado?
- Você teria gravado aquela nossa conversa?
- Ah, então você lembra de mim!
- Você é que não lembrou de mim!
- Na época você disse que teria sido um prazer ter me conhecido.
- Não tenho mais tempo para você. Adeus!
E saía
- Te amo

Escrito em 28.4.2017
Reescrito em 26.12.2017

quarta-feira, 9 de março de 2016

In foco





A Parábola dos Cegos
[Pieter Brueghel, o Velho]
1568

Ao sentar naquela diminuta pedra na qual teimo em frequentar nas manhãs claras de sol e luz, terminei esquecendo minha avenida. Vesti-me de surpresa às uma e tantas da madrugada e a inspiração atamanhou tanto que fui frequentá-la outra vez. Exalava uma espécie de ar diferente, mais amplo que de meus pulmões e mais singelo que o dos alvéolos. Voava em mim uma espécie de paz nervosa malquista pelo corpo. Mesmo serpenteando o colorido da mata nas coxas da jibóia indígena, desequilibrei-me. Ou talvez por isto tenha desequilibrado. Não sei. O fato é que minhas mãos estavam gélidas e o corpo fraquejava diante daquela imensidão de permeios. E por mais que desejasse o esquecimento, sentia por dentro uma vontade louca de extravasamento: primeiro na privada e depois no capim do quintal ainda umidecido pela chuva e ao ralentar de um grilo sereno e constante. O corpo reagiu depressa com amargura, tentando o jogo contrário. Mas o jogo era claro: havia uma recusa terminante por aquele modo de vestir tão próximo da natureza. Talvez o que mais desejasse naquele instante fosse puxar o tapete daquilo tudo, sob a casca fosca da indiferenciação. E é nesta curvatura do pensamento que o nó que me fez aqui escrever estas linhas, como se tentasse desfazê-lo pela simplicidade de cada frase, pela evocação de cada imagem acastelada. No entanto, o nó ainda está aqui, se não nestas linhas, no ímpeto que as fez querer escrever e pontuar, dando sentido ao que me fez tremer silenciosamente por dentro enquanto sentia aquele formigamento nas mãos, aquele vômito não planejado que me fazia viver a vida dos órgãos e a vida dos homens agarrados às artificialidades das lâmpadas...

Em suma, cedi o passo na maior pêia e depois dormi. Sonhei firme a voz que me acompanha nos momentos de apagamento,mas também nos de envergadura própria. Numa caixinha toda de porcelana, sonhei como Sancho ao fiel escudeiro, como a cadeira à fiel mesa, tal qual girasse uma dança melancólica nos gestos delicados e há muito sancionados por algumas engrenagens que faziam equilibrar, sem jamais precisar apoiar-se ao chão.

Começo bem o dia até perceber que me faltavam os óculos no rosto. Procurei-os debaixo da cama, em cima do móveis, dentro dos bolsos e atrás das louças e das quinquilharias. Cinco minutos e nada. Quinze minutos e nada. Uma hora e...nada. Com a mente ocupada por aquilo, fui despedindo da vida: "pode deixar que o Fábio vai me ajudar a encontrar", quando o assunto era "fique bem e até mais". Depois de um certo tempo, aquela obsessão cansou. Segui adiante com a necessária viagem, enxergando meio pela metade. O dia passou, passou e aí que percebi que não era para ser assim, num quase pôr-de-sol de um domingo nublado. Foi quando voltei à noite, com planos de viajar logo pela manhã de segunda. E cruzando a porteira, em meio à escuridão envolvente daquele céu povoado de estrelas, percebi que junto àquela pedra amiga, havia uma armação e que nas lentes refletia o clarão da lâmpada que iluminava o exterior da casa. Por segundos olhei admirado aquele óculos fugidio e rapidamente tasquei-o no rosto, sorrindo. Cheguei a sentir uma espécie de embaçamento nas lentes. Fui então espalhar para o mundo aquela surpresa revestida de mistério. "E quem disse que estamos sozinhos?", disse meu vizinho com os olhos arregalados.

Agora, sentado numa cadeira, percebo uma incongruência familiar que faz adiar planos, repetir hábitos e bradar dores. Afinal, por que uma porta fechada se a casa é a mesma, ainda que com disposições e brios distintos? Deixo os óculos no canto outra vez. Desfoque. Refrear a definição por alguns minutos é também sinal de lucidez.

Listinha:
No1: Pôr as desculpas de molho.
No2: Esfregar as costas do silêncio.
No3: Deixar quatro segundos em paz.
No4: Inteireza das emoções como sinônimo de clareza.
No.4.1: Inteireza, o oposto da razão.
No5: Se a atuação lhe confere um charme, alerde-se.

No mais, toda a sinceridade é pouca.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Panis et circus









Divagações sobre "Mad Rush" de Philip Glass. 
Interpretação: Valentina Lisitsa

 
A suspensão do mundo

aqui por fora arde
e está seco:
é o reino do pó e do sol,
enquanto
no interior do corpo
se ouve o correr do sangue,
o contínuo deslizar dos fluidos.

cá dentro faz sombra:
é como em casa
quando se chega,
e os refrescos florescem -
nos centros das mesas,
como as jarras garridas
nos quadros de Matisse,
com as persianas
entreabertas para a rua.

mas aqui fora as pedras são rugosas,
- enquanto por dentro
a eternidade prossegue
sem asperezas.

os homens suam
com orgulho
de manipularem o mundo;
enquanto por dentro o corpo
é feminino, sente-se a si próprio
na sua intimidade receptiva.
é nesse jogo de contrastes
e complementaridades
que se tece o nosso dia-a-dia.

mas a beleza das pedras
está precisamente em serem
presenças mudas.
e a felicidade desta areia, o facto dela ser
tão intocada, que um simples passo
lhe deixa um rastro para a eternidade.

indecidibilidade do mundo,
suspensão do sentido
resistindo às pressas do corpo
e das perguntas insistentes."

 
Vítor Oliveira Jorge in "A Suspensão do Mundo" (2003)
Prefácio de Isabel Pires de Lima
editora Ausência

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Laboratório 5: o corte



[Leitura performática e improvisada de "Jornal sem data" de Cassiano Ricardo sob intervenção da composição "The Frost" de Roger Eno - Álbum: Voices (1985)].

[Recomenda-se para melhor aproveitamento usar fones de ouvido]


"JORNAL SEM DATA


I
Tudo tão na hora
que te antecipo, já,
um peixe
que ainda irei buscar
no mar.
Ou dou-te, já, uma flor
que ainda me virá
do Japão.
Como se a tivesse, já,
na mão.
Tudo tão já,
sem onde, nem quando,
que o caçador me vende
um pás-
saro ainda voando.
Adianta-se o ponteiro
da hora exata
para a hora imediata.
A vida, um jornal de hoje
mas s/d.

II

Manhã e amanhã
incesto mágico do tempo
no calendário
de Roma e da romã,
do homem e do canário."



Cassiano Ricardo in Jeremias sem chorar (1964), p. 86.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Más allá de la montaña









Más allá de la montaña
 hay pasajes que no están
en pesadillas de una soledad

 En pleno humo de pies
 donde sendero alguno encuentra
ladeados codos soñadores
saltan tintineas colinas plateadas
Y por el bajo vientre de una cueva olvidada
 chispan curvas entrelazadas
 que no cierran mientras galopan sosegadas
 energía desacostumbrada

 Las ondulaciones pavimentadas
cargadas en mecanismo,
asentimientos apiñados,
desconocen pulso en dinamismo

Y en orden recaen dispositivos
 Sin dejarse a piel de un conjunto entero:
 el oro de una alba desde arriba
bajo una determinación paisajera

que es totalmente

y tontamente

sonreír.

Revisão: 8-10.9.2016
Nova revisão - 13.1.2017

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Pedra-pome



Sorriso moderno esmalte que abate escuro entrincadamente saliva soçobra o algoz necessário ardor de nós enceta franco olhar de contas na carne de se meter corpo à vez das cores selvagens estrondos em tempo algum torcicolo gato listrado sorrindo branca simpatia de fruta romã o rosto fulminando caroço de melancia restingas nas orlas paredes nas praias pulsantes enchentes insones

De bruço, Vênus se mostra serena.


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amarelo odor
da casa 7
batom de mãe
ensombreada
passado água
amor que não

pendido olhar
roupa para secar
a calça apertada
em nós intrincados

cuidada para saber
de quando
mesmo que
por quanto fosse
e nada

à espera cansejam
carretéis desalinham
o árbitro das incertezas:
mãos solteiras
ilusões passageiras

sábado, 7 de junho de 2014

"Alguém?" pergunta. Ninguém. responde.

Amanda fala para Todos: tem alguém aqui?
Symbolique fala para Amanda: ninguém tem.
Amanda fala para Todos: posso compartilhar um segredo ?

Symbolique fala para Todos: Como não tem ninguém...
Amanda fala para Todos: mas você é alguém...
Symbolique fala para Todos: Ninguém.

Amanda fala para Todos: senti. Estou enganada?
Symbolique fala para Todos: Depende do ponto de vista.
Amanda fala para Todos: gostei do nome: Symbolique. O meu veio vestido de rosa.
Symbolique fala para Todos: Não há nome, como no seu vestido há.

Amanda fala para Todos: não gosto muito de rosa, mas tava com pressa
pra compartilhar um segredo antes que eu
surtasse,
e aí peguei a primeira cor
Symbolique fala para Todos: Um segredo secreto que te faz mal, por acaso.

Amanda fala para Todos: Me faz.
Symbolique fala para Todos: E também as pressas apressadas e os surtos
surtados.

Amanda fala para Todos: rosa é clichê
Symbolique fala para Todos: clichê fetichizado.
Symbolique fala para Todos: fetichizado clichê.
Amanda fala para Todos: sim, concordo
Symbolique fala para Todos: A pressa também.

Amanda fala para Todos: mas a pressa acabou
Symbolique fala para Todos: faz bem.
Amanda fala para Todos: pra alguém que não sabe ser
alguém, até que me ajudou a esquecer...

Symbolique fala para Todos: não vale a pena. Faz com que sinta!
E depois largue de lado.

Amanda fala para Todos: engraçado conversar com alguém
que eu não sei de que parte é o quem.
Symbolique fala para Todos: engraçado conversar com alguém
que se sabe de quem é.


Amanda fala para Todos: Quem eu sou?
Symbolique fala para Todos: Amanda.
Amanda fala para Todos: Acredita que eu seja Amanda?

Symbolique fala para Todos: Mas isso você sabe bem logo de início.

Amanda fala para Todos: O que é ser ninguém?
Symbolique fala para Todos: Ser ninguém é o contrário de ser alguém.
Amanda fala para Todos: E o que é ser alguém pra você?
Symbolique fala para Todos: Ora, ser alguém é o contrário de ser ninguém.

Symbolique fala para Todos: O nome: aquilo que um dia te mordeu.
Amanda fala para Todos: Achei-o exótico, encabulante. Quis ficar.
Symbolique fala para Todos: O símbolo é exótico, encabulante...mas nem tanto.
Amanda fala para Todos: O símbolo... E qual seria ele?
Symbolique fala para Todos: É aquilo que está.

Amanda fala para Todos: Eu tava torcendo pra que não me deixasse confus...
Symbolique fala para Todos: ...a.
Symbolique fala para Todos: Aquilo que está não é.
Amanda fala para Todos: ConfusA
Symbolique fala para Todos: VOcê é, porque é Amanda, mesmo que não seja Amanda
coisa nenhuma.

Amanda fala para Todos: Você acha que não sou Amanda?
Symbolique fala para Todos: Mas é melhor ser não sendo do que não ser
estando.
O estatuto da coisa tem um peso enorme.

Amanda fala para Todos: Você sempre foge das peguntas que te fazem?

Symbolique fala para Todos: Para se crer, é o que parece. Resposta rabínica.
Amanda fala para Todos: Já ouvi falar,mas não sei nem explicar em termos de Symbolique.
Symbolique fala para Todos: Poderia, se fosse alguém.
Amanda fala para Todos: Quando for alguém...

Symbolique fala para Todos: Quando era alguém não esperava,
corria em rima,
com a vara na mão.

Amanda fala para Todos: Se você já foi alguém
certamente não será mais.
Quando terei minha resposta?
Symbolique fala para Todos: A todo instante. Você em alguém.

Amanda fala para Todos: Mas eu não tenho tanta certeza.
Symbolique fala para Todos: Muita certeza para pouca certeza:
Alguém
Amanda fala para Todos: Ninguém
Symbolique fala para Todos: "Alguém?" pergunta. Ninguém. responde.
Simples assim.

Amanda fala para Todos: Não está sendo
Symbolique fala para Todos: não está sendo, sim.
Amanda fala para Todos: Era pra ser?
Symbolique fala para Todos: Você. Mas não é.

Symbolique fala para Todos: Ninguém vos fala.

Symbolique fala para Todos: Alguém chamado Amanda não deixa
de ser
Amanda fala para Todos: Não deixa ser exatamente o quê?
Symbolique fala para Todos: E tão exageradamente que chega
a se
desconsolar.

Amanda fala para Todos: Symbolique symbolique
Symbolique fala para Todos: como a verde casca da maça.
Symbolique fala para Todos: maçã.
Symbolique fala para Todos: A medida que se repete.

Amanda fala para Todos: Maçã não é minha favorita
Symbolique fala para Todos: No fundo é.É que ela não se deixou expressar.

Seu lado alguém é forte.
Por isso fraqueja tanto, faz pose e até
ri
por dentro.
coisa feia!
Amanda fala para Todos: Por que feia?

Symbolique fala para Todos: O que você faz com os outros.
Amanda fala para Todos: O que você faz com os outros.
Symbolique fala para Todos: O que você quer dos outros.
Amanda fala para Todos: E ainda imita!
Symbolique fala para Todos: Alguém chamado Amanda.

Amanda fala para Todos: Não gosta do nome Amanda?
Symbolique fala para Todos: Amandamandaamanda . enjoa.
Symbolique fala para Todos: Mas você é teimosa.
Amanda fala para Todos: Eu gosto de ser.
Symbolique fala para Todos: por isso tem pressa.
Amanda fala para Todos: Não é sempre.

Symbolique fala para Todos: por isso tem segredo.
Amanda fala para Todos: Não são pra sempre.
Symbolique fala para Todos: por isso vive surtando.
Amanda fala para Todos: Mas não vivo sempre.
Symbolique fala para Todos: Ninguém, claro.

Amanda fala para Todos: O que tem você?
Symbolique fala para Todos: Dois ouvidos e um silêncio.
Amanda fala para Todos: Ninguém foge de perguntas.
Symbolique fala para Todos: Se ao menos estivesse...
Amanda fala para Todos: Está fugindo?

Symbolique fala para Todos: Ninguém, esqueceu?
Amanda fala para Todos: Não esqueço, Ninguém.
Symbolique fala para Todos: Quem muito tem e quer ser, muito esquece.
Acontece.

Amanda fala para Todos: E quem não tem nada?
Symbolique fala para Todos: Quem não tem nada, nada tem.
Amanda fala para Todos: Como pude esquecer. Tolinha!
Symbolique fala para Todos: Como se não pudesse!

Amanda fala para Todos: Sempre com ponto final.
Symbolique fala para Todos: Sempre com ponto de interrogação.
Amanda fala para Todos: Gosto de interrogação.
Symbolique fala para Todos: Alguém anda a base de vírgula.
Por isso tem pressa.
Por isso tem segredo.
Por isso vive surtando.

Amanda fala para Todos: Ninguém nunca me descreveu tão bem.
Symbolique fala para Todos: Simpatia.
Amanda fala para Todos: Embora Ninguém estivesse tão errado também.
Symbolique fala para Todos: Acontece todas as vezes que se ouve.

Amanda fala para Todos: Ninguém ri por dentro?
Symbolique fala para Todos: Cada qual no seu galho.
Mas o lado alguém insiste na pergunta: "Você gosta de gatilhos?"
Amanda fala para Todos: Qual lado prefere?

Symbolique fala para Todos: A cegonha preferiu deitado.
Amanda fala para Todos: Não queria falar da cegonha agora.
Symbolique fala para Todos: Mas foi ela quem te amarrou.
Amanda fala para Todos: Mas agora não estou amarrada.
Symbolique fala para Todos: Como se isso fosse possível...
Amanda fala para Todos: Se tem tanta certeza, não preciso provar.

Symbolique fala para Todos: É o que está afirmando dizer.
Amanda fala para Todos: Agradecida...
Symbolique fala para Todos: Sem certeza, pois sem porquês.
Ninguém na incerteza. Enquanto alguém
na certeza de tantas tantas
chega a ser incerteza.
Essas coisas.

Amanda fala para Todos: Você sabe que esqueço.
Por isso tenho pressa,
por isso vivo surtando.
Symbolique fala para Todos: Por isso vive dizendo que não vive.
Amanda fala para Todos: E não vive de fato.
Symbolique fala para Todos: Pelo simples fato de viver.

Amanda fala para Todos: O fato de viver é simples.
Symbolique fala para Todos: E o de conviver mais dífícil.
Amanda fala para Todos: Mais difícil.

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Amanda fala para Todos: E se eu tivesse morrido aqui agora?
Symbolique fala para Todos: Uma maça teria aparecido.
Symbolique fala para Todos: maçã.
Amanda fala para Todos: Mas maçã não é minha predileta. Esqueceu?
Symbolique fala para Todos: Esquece que ela engana. Por isso não gosta dela.
Amanda fala para Todos: Engana mesmo.

Symbolique fala para Todos: Ela te come com os olhos todos os dias de manhã.
Amanda fala para Todos: Esperando ser comida por alguém.
Symbolique fala para Todos: Quando acorda é a primeira coisa que vê.
Há uma porção delas pelo corpo.
E ela fica pronta pra comê-la, por isso a detesta tanto.
Acha que a boca consegue dar conta e ela te vira pelo avesso.

Amanda fala para Todos: Não encontro as maçãs das quais falou.
Symbolique fala para Todos: Duas abaixo dos olhos.
Amanda fala para Todos: Achei.
Symbolique fala para Todos: O sulco te magoa.
Amanda fala para Todos: Você gosta das maçãs?
Symbolique fala para Todos: Invejosa, você.

Amanda fala para Todos: Você não gosta das maçãs.
Symbolique fala para Todos: Apanha todas as maças do mundo só
pra dizer que não é a sua
preferida.
Symbolique fala para Todos: maçãs.
Amanda fala para Todos: Você insiste em tocá-las só porque sabe que não
são
minhas prediletas.

Symbolique fala para Todos: Elas te sustentam, ingrata!
Na frente,
nos lombos
e até no peito!
Só porque você é feita de maça.
Symbolique fala para Todos: maçã.

Amanda fala para Todos: E continua insistindo. Você é insistente, sabia?
Symbolique fala para Todos: Como se fizesse pouco caso da uva...
Amanda fala para Todos: Uva também não é a minha predileta.
Symbolique fala para Todos: Essa cor louca que te desandou por aqui.
Amanda fala para Todos: Toda insistência por causa de um rosa clichê?
Symbolique fala para Todos: Por causa da uva que ela representa.
Deve viver alcoolizada, a coitada....

Amanda fala para Todos: Imaginava que a insistência iria continuar
quando disse que uva também não é a minha predileta...
Symbolique fala para Todos: Imaginava porque você mente
um segredo.
Amanda fala para Todos: Eu já tinha me esquecido dele.
Symbolique fala para Todos: Foi ele que te fez partir ontem de manhã.
Amanda fala para Todos: Mas voltei por causa dele.
Symbolique fala para Todos: Para a causa dele.

Amanda fala para Todos: Me surpreenda.
Symbolique fala para Todos: Confesse, você não vive sem a cauda dele.
Amanda fala para Todos: Me dê um motivo pra eu gostar das maçãs?
Symbolique fala para Todos: Lembrar do segredo.
Amanda fala para Todos: Lembrar me faz odiá-las ainda mais.
Symbolique fala para Todos: Quando a maça a devora, pela manhã, antes mesmo do espelho.
Symbolique fala para Todos: maçã.

Symbolique fala para Todos: O sulco a magoa. Está mesmo ficando velha!
Amanda fala para Todos: E você sabe se já não sou?
Symbolique fala para Todos: Em nenhum momento.
Amanda fala para Todos: E você? É velho?
Symbolique fala para Todos: Ninguém. Se pelo menos deixasse de comer as maças ficaria mais jovem.
Symbolique fala para Todos: maçãs.
as uvas também.

Amanda fala para Todos: Você gosta das maçãs corretas, separadamente?
Symbolique fala para Todos: Como se fosse possível...
Amanda fala para Todos: E por que não é?
Symbolique fala para Todos: Preciso antes perguntar a Amanda.
Amanda fala para Todos: Seria interessante ver um interrogação que não fosse a minha...
Symbolique fala para Todos: Ninguém: o umbigo do outro, para você.

Amanda fala para Todos: Ai, Symbolique!
Symbolique fala para Todos: A peça te faz sonhar acordada.
É da casa, quase.
Amanda fala para Todos: Por que quase?

Symbolique fala para Todos: Porque você nunca se decidiu direito.
Amanda fala para Todos: Como saber o que é direito?
Symbolique fala para Todos: Pergunte a alguém. Ele deve saber.
Amanda fala para Todos: E por que NINGUÉM nunca responde o que
me desperta interesse
em saber?
Symbolique fala para Todos: Mas ninguém diz: direito é o contrário do errado.
E errado o contrário do direito.
Amanda fala para Todos: Porque n i n g u é m nunca responde o que é do interesse de alguém?
Symbolique fala para Todos: Ninguém. responde. "Alguém?" pergunta.

Amanda fala para Todos: E se o cansaço bater?
Symbolique fala para Todos: No caso do cansaço mentir...
Amanda fala para Todos: Como isso é possível?
Symbolique fala para Todos: E Amanda não é?
Amanda fala para Todos: Eis que surge um interrogação...
Symbolique fala para Todos: Ao céu aberto.

Amanda fala para Todos: Amanda, sim.
Symbolique fala para Todos: O céu também!
Egoista!

Amanda fala para Todos: Qual é a razão dessa exclamação?
Symbolique fala para Todos: Reforço.

Symbolique fala para Todos: ninguém escuta alguém do outro lado.
 Amanda fala para Todos: Fala alguém que não escuta
ninguém

Symbolique fala para Todos: Ainda que Amanda quisesse mesmo era ouvir: Oi, Amanda. Como vai? Tudo bem? É que ontem de manhã o segredo vai te visitar, te apalpar a carne que ainda lhe resta. Está certo?
Amanda fala para Todos: Amanda não gostaria disso.
Symbolique para Todos: Pois contra ti ele pode tudo, incluindo o excesso que é a falta que te cabe.
Amanda fala para Todos: Me promete uma coisa?
Symbolique para Todos: Seria uma espécie de abuso pelo qual depois não surgirá vergonha alguma de dizer, com os culhões carregados.

Amanda fala para Todos: Prefiro Ninguém.

Symbolique para Todos: Fim de conversa. Um silêncio de não mais ter fim entre os dois.
Amanda fala para Todos: Seria eu a responsável por tudo isso?
Symbolique para Todos: Talvez.
Amanda para Todos:  O que fazer quando não se pode ter o que se quer?
Symbolique para Todos: Alguém costuma gritar, chorar, brigar, qualquer ato lícito ou ilícito que gere prazer.
Amanda para Todos: Queria ser como Ninguém...
Symbolique para Todos: Mas você é como Alguém. Porque Ninguém não é, além do que se ouve e se pode ouvir em pontos mais.

Amanda para Todos: Vou cortar meu nome em pedacinhos!
Symbolique para Todos:  Ficará sem voz.
Amanda para Todos: Ninguém me faz perdê-la. Será que isso é amor?
Symbolique para Todos: Carência. Fome de preenchimento.
Amanda para Todos: Estou perdida...
Symbolique para Todos: Ninguém te ouve.

Amanda para Todos: É o que me resta...
Symbolique para Todos: As mãos são suas.
Amanda para Todos: Sua simplicidade me comove.
Symbolique para Todos: O preço da maça que a devora.
Symbolique para Todos: Maçã.

Amanda para Todos: Será que vale a pena viver e amar?
Symbolique para Todos: Depende da força da tua verdade.
Amanda para Todos: Tenho ódio da verdade.
Symbolique para Todos: Peneira onde se esconde.
Por isso mente.
Por isso finge.
Por isso sente.
Amanda para Todos: E enlouquece.
Symbolique para Todos: Na medida do possível.

Amanda para Todos: Quero o impossível.
Symbolique para Todos: É a maneira de aumentar o drama, indo até as últimas consequências.
Amanda para Todos: Preciso explorar para não morrer de vez. Dói muito.
Symbolique para Todos: Sua maior qualidade.

Amanda para Todos: Doer?
Symbolique para Todos: Amar.
Amanda para Todos: E se eu quisesse transformá-la?
Symbolique para Todos: Alcançaria o novo.
Amanda para Todos: Perfeição é pouco?
Symbolique para Todos: Ao ponto da tortura chegar a ser um crime.

Amanda para Todos: Quero até as últimas consequências.
Symbolique para Todos: A força de Alguém.
Amanda para Todos: A minha força. Não a sua.
Symbolique para Todos: Vai enlouquecer. Cuidado.

Amanda para Todos: O que sugeriria?
Symbolique para Todos: A imperfeição.
Amanda para Todos: E por que logo ela?
Symbolique para Todos. Porque ela escuta.
Amanda para Todos: Como posso explorar o que me satisfaz se só escuto?

Symbolique para Todos:  Não escutar só é uma benção.
Amanda para Todos: Ninguém parece ter certeza para algumas coisas. Seria alguém?
Symbolique para Todos: Um Alguém atravessado. Não reprimido.
Amanda para Todos: Está me chamando de recalcada?
Symbolique para Todos: O seu jogo é não mais que um jogo.
Amanda para Todos: Nunca vi tanta certeza em tão pouco Ninguém...

Symbolique para Todos: Você é quem me joga.
Amanda para Todos: Como?
Symbolique para Todos: Pela boca.
Amanda para Todos: Ah, entendo. Quer dizer que você está dentro de mim?
Symbolique para Todos: O contrário também.

Amanda para Todos: Estou começando a odiá-lo.
Symbolique para Todos: Apesar de escutá-la?
Amanda para Todos: Exatamente por esse motivo.
Symbolique para Todos: Amanda por toda a parte, é o que quer.
Amanda para Todos: Melhor do que maçãs, uvas e Ninguéns.

Symbolique para Todos: A maça mordendo com esta força te roubaria os olhos.
Symbolique para Todos: maçã.
Amanda para Todos: Me irrita, me irrita.
Symbolique para Todos: Vá embora.
Amanda para Todos: Quero que fique.
Symbolique para Todos: Para quê?

Amanda para Todos: Para mim.
Symbolique para Todos: Egoísta do princípio ao fim.
Amanda para Todos: Pare de bancar o grosso seu paspalhão!
Exijo carinhos imediatos!
Symbolique para Todos: Espelho de si mesma.
Amanda para Todos: silêncio de si mesmo.
Symbolique para Todos: Talvez.
Amanda para Todos: Sempre.

Amém.




segunda-feira, 2 de junho de 2014

Laboratório 4: Do elo ao nó



 Leitura performática conjunta de trechos do discurso "The Meridian" de Paul Celan, do livro "A história do olho" de Georges Bataille e do Seminário 6 de Jacques Lacan sob intervenção da composição "Extensions 4" de Morton Feldman*.


Leitura realizada por Cesar (Bataille), Rebeca (Lacan) e Filippi (Paul Celan).


* o áudio original de Morton Feldman foi editado para fins poéticos.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Decúbito dorsal

A título de explicação: José estava de cama desde aquela manhã por razões muito óbvias; esqueceu de tomar o remédio na noite anterior. Não havia copo algum sobre a cabeceira. E muito menos cartela de comprimido esvaziada. Esqueceu.  Foi assim: deitou de bruço com a roupa no corpo e dormiu. Mas quando acordou...era como se quisesse dormir de novo, sem mais poder. Virava de um lado para outro na cama, as pernas fraquejavam, dormentes.  Ao sentir que ao seu redor tudo estava frio, mais frio dizia sentir (apesar do suor trazido no rosto). Permanecer na posição anterior, causava-lhe aflição, um mal-estar que não dava trégua. Aquele corpo ontem esquecido, hoje o beliscava, dando sovas em sua cabeça de uma maneira lamentável. Sorte a dele ter Dona Filomena por perto.
- Mena! Mena!
Um breu absoluto, um silêncio devastador. E José agarrando o travesseiro, torcendo-o com os braços, sem saber o que fazer.
- Mena! Mena!
O cacarejar do galo na esquina de casa o encoleriza: 
- Ah, se eu pego essa mulé! Esquece de vê se tomei o remédio,mas não perde uma missa!
Puxa a gravata com a mesma força que fez torcer o travesseiro, com a diferença de que desta vez o pescoço cede. Ergue a mão para o nó e o faz querer subir.
- Mena!!! - berra, sustentando o grito ao máximo de seu choro.
Silêncio outra vez. Ouve-se à distância o ladrar de um cão e, mais uma vez, o cacarejar. As pálpebras, então, se retraem, em franco reconhecimento de que todo e qualquer ato é inútil. Diz baixinho, quase gemendo na última sílaba:
- Mena...
Não se sabe quanto tempo passou. Subitamente, apertando o travesseiro, percebe um feixe de sol cortar geometricamente a parte esquerda do rosto coberto de suor. No centro dele, um olho esbranquiçado abre-se em emoção. Os nervos do olho sobressalentes como sulcos em uma terra. Num misto de raiva e lamentação, entrega-se às sensações interioranas, com múltiplas variações fisionômicas: franzindo o cenho, comprimindo os olhos, abrindo a boca: não querendo dizer coisa alguma...senão alguns gemidos agonizantes.
Alguns garotos ruidosos passam rente à janela do quarto, incitando o ladrar dos cães. José abre a boca e provém meros espasmos de som. Sem forças. Os lábios já secos.
Vira para o outro lado, com os olhos bem abertos ao que lhe acontece, em pronta espera. Começa a lembrar de quando construiu a casa há 50 anos, com a ajuda de seu pai: um presente de casamento.
Uma lembrança tão velha quanto a morte. Será a própria lhe rondando?
A voz de seu Joaquim se torna audível. Talvez cumprimentasse alguém, na parte que cabe a ele o dia. Pena José não poder participar da mesma luta. A luta de José agora é outra.
O telefone. Olha o telefone preto, na sala minúscula, ao lado da bíblia aberta. Mas o corpo não entende, amarrotado como a roupa! Vira e revira, o que sabe fazer.
Na ponta da cama. Se pudesse sentar ao menos naquele instante! Faz força, chegando a bufar pelas narinas, para erguer um ângulo a menos. Mas volta ao sentido inicial, mais cansado e inútil do que antes.
Se não bastasse, uma mosca pousa em sua testa. As várias patinhas deslizando por toda a extensão qual fosse uma terra de ninguém, bagaços reduzidos a um tempo amorfo. José esforça por uma segunda vez e quase chega à metade. De repente, ouve um som quase tão vago quanto os seus dias. Um molho de chaves sendo largado num móvel da sala e algo como uma voz feminina. 
- Fia, minha fia!
José esperava, impacientemente. Imaginava-a cumprindo com aquele antigo ritual de manias, indo ao banheiro, bebendo um copo de água, futucando a geladeira em busca de qualquer sobra e depois...depois a ida ao telefone, próximo à porta do quarto onde se encontrava,onde permanecia por quase uma hora até Dona Filomena reclamar.
Uma pequena brecha de luz passava pela porta. Pena tê-la quase encostado ao entrar. Pena também estar agora tão acordado como poucas vezes antes estivera.
Esticava o braço a fim de abri-la um pouco mais. Os dedos estendidos, trêmulos de puro desejo. 
- Fia! Vêm cá! É o papai! É o papai!
E lembrou quando a colocava sentada sobre uma das pernas quando queria falar algo importante. Naquela perna que agora não lhe obedecia mais.
Silêncio.
O telefone está no mesmo lugar de antes, intocável.
Pássaros trilam harmoniosamente ao som de uma goteira vagarosa.

Dona Filomena põe o pesado fone no gancho e ao abrir a porta do quarto, o encontra naquele estado, todo encolhido tal qual um feto murcho. Acolhe-o nos braços. Lágrimas escorrem pelo rosto de José. O Cristo de Filomena encostou-se, por fim.